sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O enterro da Eremita




Uma primeira lágrima tímida iluminava os olhos da pequena Olivia, o queixo trêmulo, as mãozinhas apostas como que em oração instintiva.
- Morreu? Caranguejos não morrem mamãe.
- Morrem sim filha, é a ordem natural das coisas.
- Pára de dizer que ele está morto, animais não morrem, ela está dormindo.
- De certa forma querida, é como se dormisse mas de um sono que não há de acordar para esta vida jamais. A vida é assim mesmo.
- Gatos não morrem – diz ela concomitantemente fitando Gaston O. Gato, que por sua vez repousa indiferente no ninho de papéis que ele mesmo ajuntou sobre a saída da calefação. Gaston abre ligeiramente um olho, como que interrompido pelo olhar dela, depois escancara a boca bocejando imenso.
- Todos seres vivos morrem. - digo.
Ela rompe em soluços, gritando alto que quer morrer também, que não é justo, que não quer mais ser minha amiga – ela sempre rompe relações quando está frustrada e não sabe exatamente o que quer dizer.
Surpresa com a reação dramática continuo meus afazeres, afinal já programada: a vida continua.
Os gritos não param, ela levanta os bracinhos e teatralmente se lança ao piso com as faces avermelhadas completamente banhadas das lágrimas sentidas.
- Amor, não chore, o Hermie está tão feliz, ele foi para o céu, encontrou a mamãe dele, o papai, alguns dos irmãozinhos. Ele já não sente frio, sede, ou fome, e pode flutuar nas alturas, junto a nuvens de algodão. Ele já contou para todo mundo lá sobre você, que você cuidava dele, que foi o eremita mais amado neste mundo. Ele está radiante pela sorte de ter sido escolhido por você.
Ela corre para o viveirinho, apanha o “filhinho” que está vivo e o nina na concha da mão chorando que agora o bebê não tem mais uma mamãe. O eremita espia com seus olhos rombóides de dentro da concha, tentando desvencilhar-se encolhendo as pinças e balouçando curioso as antenas. Ela recolhe a recém desenhada figura da “família” que havia colado no viveiro como presente aos crustáceos.
- Docinho, vamos fazer um funeral para ele, vamos colocar seu desenho porque o Hermie quer mostrar para todo mundo lá no céu.
Compomos a última morada do decápode em uma caixinha de acrílico transparente, perfeita para a ocasião solene, o leito é feito de rosas secas colhidas do jardim durante a primavera passada, cuidadosamente deitamos o eremita em sua concha-mortalha, sua última tanatocrese. Repousa sobre uma toalha de papel branca, no sofá, enquanto a pequenina chora copiosamente aninhada em meus braços. “Parece o caixão da Branca de Neve” - digo tentando desviar-lhe o pensamento.
O frio é impiedoso lá fora – vai ser impossível cavar-lhe uma cova – penso fitando da grande vidraça a neve ultra macia devido ao frio causticante.
Ela pede para segurar o defunto, alisa-lhe o exoesqueleto carinhosamente. Quer beijar o bixinho. Digo-lhe que não, que o corpo pode ter bactérias, germes, estafilococos. Sugiro que sopre beijinhos. Ela interrompe o choro e curiosa principia a lhe puxar o corpo. O pléon não oferece resistência alguma e estupefatas adimiramos a fragilidade da pequena cauda que o mantinha confinado. Depois de solto da concha o animal se desintegra, gradativamente, as perninhas caindo no papel branco com que por si. A primeira autópsia se conclui.
- Mamãe vamos cozê-lo?
Minha vontade é cair em gargalhadas. Sou obrigada a desviar o rosto e a abraço forte.
- Não filhinha, não podemos comer seu animalzinho.
O enterro é breve, ela mesmo cava a neve macia com as mãos, faz uma cova de gelo. O Hermie repousa no jardim aguardando a primavera, até que o solo volte a sua maciez para a cova permanente.
Dentro de mim ainda ecoa a pergunta da pequena “vamos cozê-lo?”. Era um propósito. Minha pequena procurava um propósito para a estúpida partida.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Fractus



Alva a neve
voa
veste iluminando
as valas os vãos os vazios
fracções congeladas
não Euclidianas desta geometria
minúscula
complexa em sua simplicidade
triangular gélida
infinita
frágeis cristais límpidos
multicolores
na alvura deste ar congelado
em movimento

A nuvem baixa
descende em faixa
refletem céu e terra
a bruxuleante luz branca
refractada, crepuscular

imagens caleidoscópicas
pontiagudas ante o eixo
triangular da mensagem
matemática
enigmática
pragmática...
sob a lâmina do instante
jaz a objetiva ocular
mesmerizada
buscando decifrar
o breve instantâneo
grafado desde o universo