segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Halloween



            Manhã de outubro, o ar está fresco e o cheiro da chuva recende no quarto. Rompe um sol silenciosamente gritante que tornam mornas as brisas da recém-manhã.
            Antes que o relógio desperte, ela acorda com o gorjeio  dos pássaros e um feixe de luz teimoso que lhe brinca nos olhos tristes. O quarto está quente; por todos os lados vêem-se objetos que foram negligenciados pela correria frenética da semana que está se findando.
            Dizem que hoje é dia das bruxas – recorda-se ela pondo-se de pé de um só salto. A manhã amanhece querendo correr, o dia vai passar muito rápido. Todos os dias são assim: a natureza lá fora explode num espetáculo grandioso que ela não tem tempo para assistir.
            - Pai, acorde! Faz um cafezinho para mim?
            Ele é pedreiro, mas está desempregado há três anos, desde que ficou doente e perdeu o emprego, justamente quando ela conseguiu realizar um sonho gigantesco e quase impossível: entrou para a faculdade. 
            A casinha é muito pequena, quatro cômodos apenas e a mãe ainda dorme.
            Ela escova os dentes fitando-se no espelho manchado do banheiro fazendo caretas de bruxa, afinal hoje vai ser o primeiro dia em que ela vai a uma festa de Halloween.
            O cheiro do café exala pela casa toda, o café do pai é o melhor do mundo, principalmente quando ele o serve a ela numa xícara de louça.
            O pai reclama que o álcool vai acabar, nem vai dar para levá-la ao emprego. De repente o café se torna amargo demais.
            O carro é muito velho, tudo o que têm. A casa é emprestada e o carro uns amigos deram para os pais dela. Os pais têm um coração tão cheio de amor que não vêem as próprias condições e saem, religiosamente, a visitar enfermos, necessitados e a levar palavras de paz, de companheirismo e de amor.
            Têm muitos amigos, a casa humilde é sempre visitada e as pessoas gostam de estar com eles.
         Finalmente o carro pega, mas é preciso empurrá-lo, não está engatando a marcha-ré. Partem então, ela vai ansiosa na esperança de que as coisas sejam melhores na loja hoje, ama seu trabalho e tem vontade de melhorar sempre, de atender da melhor forma possível, de agradar para fazer prosperar o sonho do patrão dela. Sabe que muito depende dela, não mede esforços pois sabe que seu trabalho é seu espelho.
            Hora do almoço. Hoje, como usualmente acontece não vai dar para almoçar em casa. Come um salgado e sai para organizar os preparativos da festa de Halloween do curso de Letras.
            Compra um rato enorme de olhos vermelhos, magnífico, parece real. Vai usá-lo no painel da decoração. Compra uma aranha para usar no pescoço, vai se vestir de viúva-negra. Vão-se tecendo os minutos.
            Súbito, em uma vitrine brilhante avista um opalescente anel, o momento como que congelado paira por um instante de transcendencia pura, o anel lhe diz tantos enigmas em forma de brilho que não se contém: adentra a loja e demonstra seu deslumbramento.
            Solícita a vendedora abre a vitrine e lhe oferece a jóia para que experimente, finge não lhe ver as vestes simples, a impossibilidade de tal venda.
            O anel é de ouro, esculpido em arabescos delicados com um grande topázio azul, lapidado em forma de um quadrado que descansa sobre a elevação de uma base no formato de liteira.
            Com a respiração suspensa ela desliza o olhar sobre a jóia que cintila no seu dedo em epifania, tão real quanto o céu que dizem não ser azul mas que é, basta olha-lo.
            Devolve com pesar a jóia para a vendedora, e continua seu caminho para o dia das bruxas que a espera.
            Leva consigo um brilho mais intenso que o da jóia, refletido no olhar. Segue pensando que se pudesse comprar aquela jóia não teria os problemas todos que tem.
            Cai a noite, a chuva, e então as bruxas, as odaliscas, monstros de todos os tipos tomam as ruas da cidade. A festa é um sucesso, e ela ficou linda toda de negro com uma aranha a lhe subir pela garganta.
            Contagiada pela alegria dos monstros ela sorri e brinca, o brilho do anel não vai apagar a esperança de seu olhar. Sabe que a vida a está lapidando para que brilhe algum dia.




Continua amanhã... não percam  a parte II: O  segredo do anel 
3º Letras – UNIFEV
01 de novembro de 2003
2:50

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