sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A




A letra matriz do encadeamento de símbolos, uma história contada por uma tia chamada Áurea. Aos meus seis anos de idade, vestida de uniforme xadrezinho vermelho e branco, camisetinha branca escrita Enny. Fora um dia muito estranho, mistos os desejos de ver coisas novas, e a ansiedade de ser deixada pela primeira vez do colo gentil da minha mãe.
A dona da Fábrica de Letras foi minha tia Áurea, ela pintava em nossa memória as histórias das origens dos símbolos que seriam nossas ferramentas. Vagarosamente, no primeiro dia, desenhou um círculo aberto que partia da direita para a esquerda, descendo lentamente para atar-se novamente a direita com um traço reto e descer em um arabesco à esquerda que chamou “perninha”. À nossa primeira letra chamou Alice, disse que era uma menininha |a'|legre que adorava rabo-de-cavalo, e que era tão faceira que vivia fazendo o som |a|. No livro da vida, aquela página desencadeadora de mistérios sem fim. O “a” aprendido se juntando às próximas letras, formando palavras mil que misturadas à alquimia da imaginação, desprendia das folhas amareladas do caderno transportando-nos ao mundo infinito das possibilidades.
A mestre da Fábrica nos presenteou as chaves mágicas decifradoras de coisas tantas que vieram depois.Quando penso na Fábrica, vislumbro aquela janela de ontem, tão cheia dos ecos das canções que Áurea nos embalava todas as manhãs, penso na mão doendo para adestrar-se ao hábito de fabricar letras. Uma chave, foi tudo o que nos deu. Deparo hoje ainda com esta chave alpha me desafiando com aparencia enigmática: decifra-me ou te devoro.

a

domingo, 11 de novembro de 2012

O segredo do Anel



Sete anos.
Uma vida inteira em fragmentos pelo universo afora. Enigmas escritos em estrelas que versam em música, as metáforas não pronunciáveis em palavras. A música de um choro, o gemido da criança expelida entre lágrimas de amor.
Tudo faz sentido, ela segura o anel e suspira, enfim, a verdade.
As cores dançam nas ruas, nas vitrines, as árvores dizem tanto no balouçar de suas folhas, e quando o outono lhes despem nas frias noites, dizem tristes histórias uivando ao vento com seus galhinhos esturricados o sentido da primavera, pelo contraste da intensidade de um inverno. Todas as coisas dizem seus mistérios.
Tanta dor.
A pedra cintila azul. Topázio azul, um azul de profundidade infinita, de lágrimas, de tristezas passadas e por vir. Uma coisa. O anel é apenas uma coisa, o veículo da mensagem que veio desse entender de hoje, dessa sensação de adivinhar o que há por vir estampados na dura permanência em forma de uma pedra. Pedra que já esteve enclausurada no subsolo, em repouso, em silencio profundo, parte da sustentação deste solo que sustém o peso das gerações que passam. Os grãos da tua poeira falam.
Um dia tesouro do garimpeiro, noutro do comerciante, na mão da graduanda feliz, da esposa, da mãe.
A pedra nasceu bruta, foi gerada pelo tempo, pelas condições propícias do solo, suja, foi manejada pelos homens mais rústicos de mãos calejadas. A pedra sofreu perdas imensas, partes de si amputadas para sempre para lhe darem o formato retangular. Enfrentou as lixas cruéis, o calor das fricções em polimento.
O designer um dia se assentou, de lupa na mão examinava-a entre a pinça pungente. O designer avaliou-a do ápice à base, esquadrinhou sua beleza e inspirou-se nos arabescos para acentuar-lhe a glória azul; decidiu que a pedra descansaria em uma liteira de ouro.
E foi assim, manhã de 31 de outubro de 2003, dia de halloween que ela passou pela vitrine da loja e entendeu que a pedra lhe dizia um enigma e embora não pudesse entender naquele dia, não pode resistir-lhe como que hipnotizada. Uma vez tocada, se tornou escrava do anel, embora não pudesse levá-lo pois nunca poderia comprar joia tão cara.
No ano seguinte ela partiu para bem longe, iria estudar por um ano. Era uma estação de milagres tantos. Conheceu o amor de sua vida, um amor barroco. Casou-se. Havia deixado aqueles três anos sonhados da faculdade para trás. Sofria. O que fizera? E agora? Nada faz sentido na confusão da mudança. Traçara caminhos na areia, e o vento do tempo os apagara.
Em 2007 retornou, não podia viver o transtorno de abandonar um sonho tão imenso que havia sido aquela faculdade. Deixou o esposo, o cão faleceu, o dono da loja pediu para o esposo entregar as chaves em 120 dias, depois de 16 anos no mesmo local. Caos. Lágrimas de saudade. Noites em claro mergulhada nos livros, sorvendo o café do pai. Viera dizer adeus. Andando nas ruas tão estranhas quanto familiares, avistou o anel de longe. Já nem lembrava dele. Ele ainda esperava por ela.
Decidiu que seria seu anel de formatura. Faltavam os símbolos, o ourives cravejou à direita uma flor-de-lis e à esquerda a coruja. Comprou a prestação, agora podia pagar as prestações. A pedra tinha um risco, razão porque permanecera esperando, uma marca sulcada na superfície. O ourives ofereceu desconto ou lapidar novamente. Optou por lapidar. A pedra guarda essas marcas dos últimos toques.
O anel fica em uma gaveta, na maior parte do tempo, sempre grita de lá quando a gaveta é aberta. A estória toda lhe passando por um instante pela mente. Oras ela sorri, outras chora. Uma pedra cor da água da saudade.
Dentre as peças tantas do quebra-cabeça enigmático, outro dia ensimesmando começou a ler coisas antigas. Relembrou aquele texto, o dia do halloween, os cheiros todos, os risos da amigas que não lhe sorriem mais. Ao final daquele relato, a data: madrugada de 01 de novembro de 2003.
Exatamente sete anos depois, às 2:57h puxara os bracinhos da filha que nascia para o mundo para si. Abraçara o prólogo de uma nova história. O anel tentara lhe dizer, ela sabia em sentimentos e só agora fora concedido o conhecimento daquele mistério. A pedra do anel, a pedra do mês da criança, a porta de um segredo ainda por vir.



segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Halloween



            Manhã de outubro, o ar está fresco e o cheiro da chuva recende no quarto. Rompe um sol silenciosamente gritante que tornam mornas as brisas da recém-manhã.
            Antes que o relógio desperte, ela acorda com o gorjeio  dos pássaros e um feixe de luz teimoso que lhe brinca nos olhos tristes. O quarto está quente; por todos os lados vêem-se objetos que foram negligenciados pela correria frenética da semana que está se findando.
            Dizem que hoje é dia das bruxas – recorda-se ela pondo-se de pé de um só salto. A manhã amanhece querendo correr, o dia vai passar muito rápido. Todos os dias são assim: a natureza lá fora explode num espetáculo grandioso que ela não tem tempo para assistir.
            - Pai, acorde! Faz um cafezinho para mim?
            Ele é pedreiro, mas está desempregado há três anos, desde que ficou doente e perdeu o emprego, justamente quando ela conseguiu realizar um sonho gigantesco e quase impossível: entrou para a faculdade. 
            A casinha é muito pequena, quatro cômodos apenas e a mãe ainda dorme.
            Ela escova os dentes fitando-se no espelho manchado do banheiro fazendo caretas de bruxa, afinal hoje vai ser o primeiro dia em que ela vai a uma festa de Halloween.
            O cheiro do café exala pela casa toda, o café do pai é o melhor do mundo, principalmente quando ele o serve a ela numa xícara de louça.
            O pai reclama que o álcool vai acabar, nem vai dar para levá-la ao emprego. De repente o café se torna amargo demais.
            O carro é muito velho, tudo o que têm. A casa é emprestada e o carro uns amigos deram para os pais dela. Os pais têm um coração tão cheio de amor que não vêem as próprias condições e saem, religiosamente, a visitar enfermos, necessitados e a levar palavras de paz, de companheirismo e de amor.
            Têm muitos amigos, a casa humilde é sempre visitada e as pessoas gostam de estar com eles.
         Finalmente o carro pega, mas é preciso empurrá-lo, não está engatando a marcha-ré. Partem então, ela vai ansiosa na esperança de que as coisas sejam melhores na loja hoje, ama seu trabalho e tem vontade de melhorar sempre, de atender da melhor forma possível, de agradar para fazer prosperar o sonho do patrão dela. Sabe que muito depende dela, não mede esforços pois sabe que seu trabalho é seu espelho.
            Hora do almoço. Hoje, como usualmente acontece não vai dar para almoçar em casa. Come um salgado e sai para organizar os preparativos da festa de Halloween do curso de Letras.
            Compra um rato enorme de olhos vermelhos, magnífico, parece real. Vai usá-lo no painel da decoração. Compra uma aranha para usar no pescoço, vai se vestir de viúva-negra. Vão-se tecendo os minutos.
            Súbito, em uma vitrine brilhante avista um opalescente anel, o momento como que congelado paira por um instante de transcendencia pura, o anel lhe diz tantos enigmas em forma de brilho que não se contém: adentra a loja e demonstra seu deslumbramento.
            Solícita a vendedora abre a vitrine e lhe oferece a jóia para que experimente, finge não lhe ver as vestes simples, a impossibilidade de tal venda.
            O anel é de ouro, esculpido em arabescos delicados com um grande topázio azul, lapidado em forma de um quadrado que descansa sobre a elevação de uma base no formato de liteira.
            Com a respiração suspensa ela desliza o olhar sobre a jóia que cintila no seu dedo em epifania, tão real quanto o céu que dizem não ser azul mas que é, basta olha-lo.
            Devolve com pesar a jóia para a vendedora, e continua seu caminho para o dia das bruxas que a espera.
            Leva consigo um brilho mais intenso que o da jóia, refletido no olhar. Segue pensando que se pudesse comprar aquela jóia não teria os problemas todos que tem.
            Cai a noite, a chuva, e então as bruxas, as odaliscas, monstros de todos os tipos tomam as ruas da cidade. A festa é um sucesso, e ela ficou linda toda de negro com uma aranha a lhe subir pela garganta.
            Contagiada pela alegria dos monstros ela sorri e brinca, o brilho do anel não vai apagar a esperança de seu olhar. Sabe que a vida a está lapidando para que brilhe algum dia.




Continua amanhã... não percam  a parte II: O  segredo do anel 
3º Letras – UNIFEV
01 de novembro de 2003
2:50