quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A CANÇÃO DO EXÍLIO DA GALINHA GRANJILEIRA


            Era uma vez uma galinha granjileira, nascera assim, um dia, de um modesto ovo pequenino; era franzina e demorou muito à aprender ciscar sozinha, mas todo o poleiro tomou logo conhecimento da novidadeira: do primeiro pio já se lhe entrevia o espírito vivaldino, sagaz. A mãe tivera três lindos pintinhos.

            “Mas como aquele era franzino” – pensava a pobre Cocobeca balbuciando um cacarejo de encorajamento à pobrezinha.

            O galinheiro era um lugar feliz, apesar das constantes brigas pelas parcas minhocas. Milho? Só de vez em quando, nos finais de semana e feriados. Os pintinhos cresciam numa algazarra só; nem bem amanhecia, beliscavam as asas protetoras das mães para correrem livremente no quintal piando faticamente o tempo todo. Brincavam de pique, de rodas, de poleirinho encantado... Umas gracinhas. Quando completavam seis dias estavam prontos para ir a Granjescola. As mães franziam as cristas nas filas determinadas a garantirem uma vaga aos filhotes. E como cacarejavam... Sobre como estava calor, sobre esses pintinhos de hoje em dia tão espertos – “antigamente não era assim não senhora”. Sobre quem havia sido assado – “um horror Granjamadre”, sobre o governador do galinheiro, umas contra, outras a favor. As vezes até se bicavam, mas logo iam se desculpar no poleiro da vizinha por bicá-la assim, por nada. E assim reinava a paz do galinheiro.

            Ora mal completara seis dias de vida do pintinho franzino já sabia escrever seu nome, ler algumas palavras e erguia o bico orgulhosamente piando alto:

            - Eu vou ser escritora, vou cacarejar granjinglês e vou morar na Gringogranjelândia.

            O senhor Galo sorria orgulhoso, já a dona Galinha cacarejava que não ficasse sonhando com os galinheiros alheios, que nascera para o puleiro e que a granja não é coisa pra galinha carijó.

            Inconseqüentemente o pintinho sonhava, estudava muito, aprendera a amar os livros que podia emprestar da granjiblioteca; lia-os ávida cheirando as páginas, passava horas tocando com as peninhas da ponta da asa nas páginas amarelas.

            O tempo passou rápido, o pintinho logo emplumou, se tornou uma franguinha de grandes olhos irrequietos, pernas muito finas e muitos, muitos livros debaixo das asas.

            Começou logo a escrever, crônicas, poemas, escrevia prolificamente e sempre. Contudo as crises pelas quais o galinheiro sempre passava a impediam de crescer na vida. Não queria ser lá uma galinha famosa, mas sonhava em poder viver cismando, ciscando e escrevendo. Entretanto no poleiro da vida tinha que trabalhar duro o dia todo.

            Algum tempo depois, tornara-se já em uma galinha-moça sem atrativos físicos em especial; tão magricela coitada que o grajavô lhe compôs: “quando vejo franga magra/Logo me vem no sentido/ ou é fome ou é doença/ ou é maltrato do marido”. No trabalho então um franguinho metido a galo lhe cantava “sapateia franga feia”. Coitada, era mesmo muito feia, mas como cacarejava bem no papel. Conseguira ingressar à faculdade, se deu muito bem, era convidada para projetos, tirava notas altas e sempre andava flutuando com novas idéias.

            Assim aprendeu que na verdade nunca tivera um sonho de viver na Gringogranjelândia, antes se objetivara a obter isto, para chegar àquilo: ser escritora. Precisava muito conseguir alguns dólares para ajudar ao senhor Galo e à dona Galinha que já estavam doentes, quase desmoelados, além de viver sonhando com um tempinho livre, longe das olheiras e tanto stress pela correria da vida.

            Às vezes pensava em desistir, lembrava sempre dos conselhos: “pára com isso, quem nasceu em poleiro não é para a granja!”. Apesar da inteligência a pobre jovem galinha nunca pôde compreender por que uns nasciam em granjas chiquérrimas enquanto eles tinha que lutar ferrenhamente pelo bocado minhocal, nunca prosperando. Por que tanto contraste em um galimundo tão evoluído.

            O galinheiro mal sobrevivia  nos galhos da velha mangueira do quintal, cercado de um mato muito cobiçado pelas vacas que por ali pasteavam. Por sorte havia uma cerca, mas esta enferrujara e ameaçava ruir a qualquer instante. Algumas galinhas preocupavam-se muito com isso, faziam passeatas e criavam ongs tentando proteger o matagal biodiversificado do qual se alimentavam.

            Um dia a galinha soube de um programa especial, poderia viajar para a Gringogranjelandia se falasse um pouco o granjinglês, passasse no teste piopsicológico, tivesse entre 18 e 26 dias, soubesse dirigir, não tomasse destilados de milho e nem fumasse da palha, se não tivesse problemas de obesidade, emocionais, físicos, pagasse uma astronômica quantia de mil e oitenta dólares ao programa (imagine para a pobre franguinha que quantia impossível). Porém a pobre galinha lutou por três anos: economizou, não foi à festas, não saía aos finais de semana, fazia um cursinho de granjinglês comunitário, que um franguinho solidário ministrava aos sábados a tarde, pediu dinheiro emprestado à sua tia do galináceo Frão Paulo para tirar a carteira de frangotorista, mas dirigia que era uma lástima, coitada. Até a foto na carteira de motorista demonstrava-lhe o pavor, o sorriso amarelo da pobrezinha.

            E assim foi, deixou o último ano da faculdade para dispor-se a ser escolhida, imagine, por uma família da galinácea gringogranjelana. Seu trabalho seria cuidar dos filhotes durante o dia e estudar durante o tempo livre. Acabou conseguindo; foi escolhida por uma família com três pintinhos bebês. Muito lindinhos.

            Chorou copiosamente na despedida, amava demais sua faculdade e teria que sacrificar o partilhar do último ano de seu curso e também a chance de graduar-se com os amigos de três longos anos.

            Embarcou em um gavião enorme, era a primeira vez que voava. O vôo durou nove horas, foi durante a noite. De manhã cedinho chegaram à “big apple”. Voou sozinha, ninguém para conversar, todos introvertidos ensimesmando. A pobre galinha sentiu-se muito mal durante o vôo, ia já sentindo uma saudade gigantesca de toda a vida frenética que deixara em seu querido Granjasil.

            Viu neve pela primeira vez, vestiu seu casaco de penas e passeou sobre as ruas do galinácio nova-iorquino. Uma galinha sozinha em New York, que galinheiro imenso e lindo, gaiolas douradas reluzindo, quanta suavidade na neve. Os carros são o sonho de todo franguinho. As galinhas, muito brancas de olhos azuis andam cacarejando baixinho, muito educadas, com seus bicos vermelhos e unhas esmaltadas e penas de grifes famosas.

            Depois do treinamento, a jovem galinha embarcou para seu destino final: a granja onde mora o presidente da Gringogranjelândia, Granjuóshington.

            Os galinheiros de Granjuóshington são lindos, tudo reluz, há flores ornamentais, tudo funcional, “o melhor que  há no mundo” cacarejam os gringogranjelanos orgulhosíssimos.

            As galinhas gringogranjelanas levam uma vida muito saudável, há horário para tudo, desde o comer da ração matinal até o momento de adentrarem suas gaiolas granjais para dormir. Ostentam sempre o bico superior suspenso para parecer que estão sempre sorrindo. A pobre galinha jovem tem câimbras de tanto sorrir de volta.

            Todas as noites, após a ração, a pobre jovem galinha se retira para o alto do poleiro que lhe fora reservado no sótão da granja, e cacarejando baixinho chora; pios de soluço lhe agitando o peito franzino. Tem tantas saudades das cristas conhecidas, acostumara-se já aos pés das galinhas granjileiras, como sofria tentando adaptar-se aos sapatos gringogranjelanos.

            Trabalhar de babá é o melhor método anticoncepcional, pensava; “imagine lá se eu vou querer um dia arrumar o meu ninho e botar um ovo, arre!”.  E a cocobeca relembrava saudosa das aulas na faculdade granjal, das poesias, das emoções tantas que uma penosa como ela já tinha aprendido a apreciar, até das bicadas dos professores sisudos cantando de galo tinha saudade.

            E os dias se passavam, a franguinha definhava e aprendia todos os dias palavras novas; lembrava-se ainda da primeira vez que sonhou cacarejar granjinglês. Foi assim que aprendeu, cacarejando titubeante os primeiros “to pirs” e logo cacarejava sentenças inteiras.

            Acostumou-se um pouco ao puleiro alheio, feliz pelo menos por estar enviando à família o bocado minhocal. Todos os dias ao entardecer, após banhar os pintinhos famintos e entregar-lhes à senhora Carijó, ela se retirava, ia entreter-se a observar as galinhas estrangeiras passeando em seu lugar predileto: um puleiro-café e livraria onde por longas horas assistia a vida galinácea, escrevendo suas idéias frangais.

            Porém um dia, estado ela ensimesmada ciscando consigo mesmo uns bocados no puleiro café, adentrou ao puleiro um galinho com ares de valente e humor radiante. Irreverentemente aproximou-se de seu poleiro, todo emplumado cacarejando alto. Foi-lhe dirigindo olhares penosos, demonstrando sinais de que adoraria bicar a ela, a quieta cocobeca.

            A princípio ela hesitou, afinal era uma franguinha donzela, não era dessas galinhas depenadas que andam por ai não senhor. Mas o galinho todo galã lhe disse que não se preocupasse, que não era galanteador banal, queria conhecer-lhe a história toda, desde que chocara.

            Titubeante a cocobeca foi-lhe dizendo os primeiros cós, e logo cacarejava tagarelante como nunca. O galinho a fitava atento, balançando a crista vistosa e molhando o bico em sua beberagem galinesa. As pernas finas da franguinha tremiam, - como era bom, enfim, dividir seus temores, sonhos e dissabores - pensava. Nem bem passou um dia e os jovens franguinhos já morriam de amores.

            Se casaram em Granjas Vegas. Ela vestiu penas alvíssimas, carregou um buquê de gardênias perfumadas, enfeitou com brilhantes a crista, passou brilho bical e se sentiu a galinha mais linda do mundo. Ele sorria feliz, garbosamente balouçava sua crista recém-polida, levou-a pela pena da ponta da asa, docemente bicando-a depois do sim.

            E tudo em Gringogranjelândia ficou lindo. O amor dos jovens penosos enfeitara as ruas, diminuira a distância e a saudade que a jovem sentia de lá, pois as árvores de cá já ostentavam pássaros que podiam contar uma história linda que principiava.

            Porém a jovem galinha continuava a lamentar-se ter deixado o último dia de sua faculdade, até que um dia decidiram que ela voltaria ao Granjasil.

            E assim o fez, a cocobeca fez suas malas e partiu para mais um dia em seu amado poleiro natal. Reviu a família, amigos de outrora, comeu do bocado minhocal que tanta saudade tinha (que tempero!) e os pássaros cantavam acima do poleiro celebrando sua volta.

            A galinha estudou, concluiu seu curso com muito orgulho. Depediu-se durante todo aquele longo dia preparando-se para voltar à Gringogranjelândia. Deixou com saudade os pais, já frangos de idade, suas irmãs casadas e seus seis sobrinhos que chocaram e cresciam tão bonitinhos. Era uma galinha tia agora, a vida lhe acrescera mais do que sonhara.

            E assim vive a cocobeca hoje, distante das palmeiras, do canto do sabiá, mas tem um cardinal que canta maviosamente sobre seu poleiro e de seu garboso galo. Ficou mais bonita, mais chique e vivendo em Gringogranjelândia gradativamente adapta-se aos costumes galinácios estrangeiros. Tem saudades de sua terra, seu poleiro natal, mas tem mister Galo que lhe cacareja tantos carinhos, que lhe faz uma galinha tão completa que a cocobeca se põe pensativa: “Sabe meu galã, que tal um ovo?”.


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