quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Reflexo

De olhos abertos vejo a menina, anos atrás, com seu colant de ballet, sentada em um banco, sozinha ela sonha buscando no horizonte tão imenso e tão verde dicas do agora, outrora. A menina outras vezes acorda de madrugada, perde o sono preocupada com o depois, sobe até o morro das paineiras e vai assistir o sol nascer. Enquanto o arrebol pinta céu e terra de mil cores rubras, ela inspira o ar da manhã, e pondera no agora, outrora. Tantas manhãs o céu demora a colorir a terra do verde e sem esperança a menina chora, as lágrimas dizendo tantas palavras mudas, sem ombros. A menina sonha ser mulher, independente, ser bonita pelo menos uma vez, com os olhos fitando aquela glória do talvez.
Hoje, diante das janelas vejo a mulher, bonita, independente, fitando com olhos perdidos o dia tão cinza lá fora, olhando com saudades nos olhos da menina do outrora, agora.

Puff

Olha a bolinha de sabão
voando sem direção
Saiu aqui deste canudinho de mamona
e quem te criou fui eu
Ouve minha vóz, voe em minha direção
tu que é feita do ar do meu pulmão
Suspensa voa nas asas da minha imaginação
Cores, reflexos, universo paralelo dos meus sonhos
Não desapareças no ar
antes pouse em minha mão e
deixa-me ver além bolha
o que já não é sabão


Quebra a membrana
Rompe no ar e te mistura
Puff
e já não é

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

TUA LUA NUA




A lua não é minha

Para rimar a lua

Ela tem que ser tua

Na rua em que caminhas



A lua não reflete minhas vestes

Para brincar com a lua

Deve-se estar nua

E pairar na abóbada celeste



Quieta, sozinha, verdadeira e crua

Iluminando por ser iluminada

Diz tudo silenciosa em suas fases de lua



Tudo está já delimitado:

Para que rime, nua te entrego a lua

Depois tudo estará findado.



Revolta!

Quero minha lua de volta.

INTERNET COMUNITÁRIA



            Você sabia que há um computador disponível à comunidade no mini-hospital do pozzobom? - Foi a frase que incrédula ouvi no ponto de ônibus dia destes. Internet de graça? Isto é incrível - imaginei já ponderando nas pesquisas todas que poderia fazer para enriquecer meus trabalhos acadêmicos, e isto aos domingos e nas madrugadas.

            Tomei um banho demorado, afinal não é todo dia que se faz uma conexão à internet. Perfumei-me e levei comigo tudo que iria precisar: canetas, caderno, disquete... Estampei o rosto com o melhor sorriso disponível e adentrei às portas do pronto-socorro como quem adentra a uma nova etapa existencial.

            Tive que esperar algumas horas, afinal as crianças do bairro já haviam descoberto alguns sites de jogos e apinhavam o pronto-socorro numa euforia incrível. Havia até um  garotinho de grandes olhos e pernas incrivelmente finas, de uns três anos de idade sugando algo que lembrava muito um pirulito.

            Enfim, chegou o momento solene em que assentei - me à frente do computador. Soube então que teria dez minutos de conexão, mas não atentei para o fato até perceber que já os havia gasto aprendendo como se utiliza o sistema. Levara comigo alguns endereços de sites, mas soube que não poderia visitá-los, pois o sistema já fornece os endereços que você pode visitar. Tudo bem - pensei e comecei a pesquisa sobre Almeida Garrett que meu professor solicitara. Consegui adentrar a algumas bibliotecas que discorriam sobre o escritor, já estava até eufórica quando de súbito apareceu novamente a mensagem de que meu tempo se esgotara. Aquilo começou a inquietar-me, mas esperta como sou não titubeei: muni-me de um disquete com ares de quem encontrou a solução de tudo, entrei novamente no site e apressadamente cliquei para salvar , entretanto, atônita recebi o recado de que o computador não permitia que se salvasse o conteúdo nele pesquisado.

            A esta hora eu já tamborilava com os dedos a escrivaninha, então tive a idéia brilhante de imprimir o conteúdo pesquisado. Olhei esperançosa para a recepcionista do hospital apontando a impressora, contudo ela ofereceu-me um longo sorriso amarelo com um meneio de ombros: - não imprime e nem há tinta na impressora - disse.

            Não sei o que houve comigo, mas as crianças começaram a esgazear os olhos e uma a uma foram se afastando em direção à saída. Ainda bem que eu estava no hospital, disseram-me bem mais tarde, teria sido fatal se não houvera sido socorrida de imediato.

            Do quarto onde permaneci de repouso eu ainda podia ouvir claramente a voz insidiosa do garotinho de pernas finas:

            - Tato, deixa eu tilá o papel do pililito, deixa!

            Prontamente a voz severa de um garoto mais velho respondia:

            - Não! Quem comprou fui eu, se tirar o papel eu chupo!


sábado, 18 de fevereiro de 2012

Pássaros do asfalto

Ante os carros que zunindo passam
Ante transeuntes apressados
Pássaros
Como pequenos pedaços
de outra era, outro espaço
Procuram bixinhos agora escassos
Donde outrora grama, hoje o asfalto
Porém o céu ainda tão cobalto
é guarida aos pássaros filheiros
que buscam no asfalto
bocados de vida
piando felizes
alheios devaneios
Aves urbanas, um quase de humanas

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Nua


Justiça é uma mulher nua

Ocultando-se no véu das palavras

quanto mais a verdade se faz sua,

seus véus se vão como asas.

 


Amai dos véus a beleza

Se a beleza e virtude da Justiça forem dúvidas.

Deixai-a e contemplai o tempo tecendo em destreza

A fazenda cintilante que a ornará de certezas

Sepultada então em seu seio tempo

A verdade,

Nua.

A vendedora de sorrisos



            Ah! Ah! Ah!

            Ecoa a Sonora gargalhada em meio as flâmulas farfalhantes, entre os tecidos multicolores que desfilam sobre as sombrias janelas da alma escancaradas para o mundo, permitindo que se lhes vislumbre etéreos fragmentos por entre os borrifos opalescentes que deslizam até culminar no salgado gosto do riso.

            Repicam os sinos da Matriz uma hora qualquer, que as horas não importam, importante é que toquem de hora em hora avisando que já são horas.

            - Bom dia, senhor! Em que posso ajuda-lo? – diz o sorriso da vendedora, amplo, cordial. O sorriso é o convite, a deixa que alguém esperava para entrar na alma da vendedora; ora, a alma de uma vendedora tem que oferecer flores, sóis, mar e promessas infinitas da possibilidade que há em se ver um arco-íris quando a chuva cair.

            Lá fora a chuva constante e miúda insiste em derramar-se, mas para quem visita a vendedora é sempre sol. O riso do cliente vai embrulhado nas suas mãos, pedaços de felicidade que por sorte ele pôde comprar.

            O sorriso da vendedora se desfaz por dentro quando o cliente vai embora, pois é importante que jamais se desfaça do rosto para o caso de ser pega de surpresa e alguém esperar um convite para entrar.

            Quando a vendedora pendura sua alma no canto escuro do vestiário, são horas de cerrar as portas.

            Trôpega ela caminha para encontrar sua casa. No rosto, o sorriso continua encantador, pois mesmo desprovida de alma carrega consigo o sorriso que é a chave para abrir as portas do vestiário para que novamente se transvista de vendedora.

            Sorrindo sempre ela chega, é preciso rir para os amigos da outra em que ela se veste agora, é preciso rir para os pais, para o filho, para Deus quando de joelhos lhe rende graças por tanto riso.

            Ah! Ah! Ah! Parece dizer o incômodo despertar do relógio, entorpecida ainda da noite sem sonhos ela desperta e sorri, porque chove e dentro do seu armário, no vestiário sombrio há uma capa que a protegerá do frio que vem de dentro dela.

            Nada se paga por ele, mas ela o dá passivamente. O objeto vendido vale mais que o sorriso que veio das entranhas, sem o qual não haveria o milagre do lucro: a venda.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

As meninas












                Responda-me o por quê!
         Esclareça-me pois quero saber, me diga por que nunca deixaste brincar a menina dos teus olhos com a menina dos meus. Por que as tuas pálpebras dementes ocultam a faceira menina que deseja correr pelos campos, colher flores e transformar em jardim teu rosto tão triste? Não vês que as águas que escorrem pelo teu rosto poderiam ser um lago de riso, tão somente nossas meninas pudessem brincar juntas? Tens medo de quê? Confie na menina dos meus olhos, pois ela habita em olhos seguros e traz na lembrança apenas belas visões, as más, ocultei no véu das palavras e por mais que a menina teime em espiar através dele, não pode ver nada além de flores.

            Acha que fiz mal? Ora, a minha menina não quer crescer, ser adulta e saber de tudo, ela quer simplesmente saltar de olho em olho, colhendo nuns flores, noutros lágrimas, mistérios insondáveis, riso, felicidade, angústia, beleza, sonho... Ela quer ir a todos eles, em todos os lugares... Porém, a minha menina descobriu tantas pálpebras descidas em seu caminho, que anda entristecida, não quer mais brincar e até mesmo ela, antes tão faceira, estendeu suas mãos e me trouxe as pálpebras descidas ante os rostos ansiosos da multidão. Assim, oculta pelas pálpebras, ela descobriu o medo, a dor, a solidão e agora chora sozinha. Creio que a menina dos meus olhos está crescendo, pois dias desses segredou-me estar cansada; - imagine, disse-lhe, já cansada e apenas és uma menina. Como podes cansar-te se já não saltas mais como antes? – Canso-me de ser menina e não mais poder ser, fadei-me de encontrar olhos nus, nus de inocência, de confiança, de amor, de companheirismo, de esperança. Fui menina, continuo menina, porém menina mecânica; todos os meus gestos têm de ter medida, hora e lugar certo, sou uma boneca de pano esquecida num canto sombrio, esperando que o lampejo dos teus olhos ilumine um dia o meu canto e me faça novamente menina, para juntas brincarmos e entrelaçarmos com os braços da esperança o momento que já deixamos partir.






Luto


Saudade, do dia distante que rimos juntas, das conversas que tivemos, das experiências que só tiveram nexo pois você estava lá. Arrependimento pelas palavras gentis que deixei de dizer, por não ter te beijado, te dito que eras importante, mesmo sabendo que você sabia disso. Que vontade de voltar o tempo, segurar tua mão e lhe dizer que não tivesse medo pois depois da breve agonia, você iria para seu verdadeiro lar. O tempo passou depressa demais. Saudade tia Tê!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A CANÇÃO DO EXÍLIO DA GALINHA GRANJILEIRA


            Era uma vez uma galinha granjileira, nascera assim, um dia, de um modesto ovo pequenino; era franzina e demorou muito à aprender ciscar sozinha, mas todo o poleiro tomou logo conhecimento da novidadeira: do primeiro pio já se lhe entrevia o espírito vivaldino, sagaz. A mãe tivera três lindos pintinhos.

            “Mas como aquele era franzino” – pensava a pobre Cocobeca balbuciando um cacarejo de encorajamento à pobrezinha.

            O galinheiro era um lugar feliz, apesar das constantes brigas pelas parcas minhocas. Milho? Só de vez em quando, nos finais de semana e feriados. Os pintinhos cresciam numa algazarra só; nem bem amanhecia, beliscavam as asas protetoras das mães para correrem livremente no quintal piando faticamente o tempo todo. Brincavam de pique, de rodas, de poleirinho encantado... Umas gracinhas. Quando completavam seis dias estavam prontos para ir a Granjescola. As mães franziam as cristas nas filas determinadas a garantirem uma vaga aos filhotes. E como cacarejavam... Sobre como estava calor, sobre esses pintinhos de hoje em dia tão espertos – “antigamente não era assim não senhora”. Sobre quem havia sido assado – “um horror Granjamadre”, sobre o governador do galinheiro, umas contra, outras a favor. As vezes até se bicavam, mas logo iam se desculpar no poleiro da vizinha por bicá-la assim, por nada. E assim reinava a paz do galinheiro.

            Ora mal completara seis dias de vida do pintinho franzino já sabia escrever seu nome, ler algumas palavras e erguia o bico orgulhosamente piando alto:

            - Eu vou ser escritora, vou cacarejar granjinglês e vou morar na Gringogranjelândia.

            O senhor Galo sorria orgulhoso, já a dona Galinha cacarejava que não ficasse sonhando com os galinheiros alheios, que nascera para o puleiro e que a granja não é coisa pra galinha carijó.

            Inconseqüentemente o pintinho sonhava, estudava muito, aprendera a amar os livros que podia emprestar da granjiblioteca; lia-os ávida cheirando as páginas, passava horas tocando com as peninhas da ponta da asa nas páginas amarelas.

            O tempo passou rápido, o pintinho logo emplumou, se tornou uma franguinha de grandes olhos irrequietos, pernas muito finas e muitos, muitos livros debaixo das asas.

            Começou logo a escrever, crônicas, poemas, escrevia prolificamente e sempre. Contudo as crises pelas quais o galinheiro sempre passava a impediam de crescer na vida. Não queria ser lá uma galinha famosa, mas sonhava em poder viver cismando, ciscando e escrevendo. Entretanto no poleiro da vida tinha que trabalhar duro o dia todo.

            Algum tempo depois, tornara-se já em uma galinha-moça sem atrativos físicos em especial; tão magricela coitada que o grajavô lhe compôs: “quando vejo franga magra/Logo me vem no sentido/ ou é fome ou é doença/ ou é maltrato do marido”. No trabalho então um franguinho metido a galo lhe cantava “sapateia franga feia”. Coitada, era mesmo muito feia, mas como cacarejava bem no papel. Conseguira ingressar à faculdade, se deu muito bem, era convidada para projetos, tirava notas altas e sempre andava flutuando com novas idéias.

            Assim aprendeu que na verdade nunca tivera um sonho de viver na Gringogranjelândia, antes se objetivara a obter isto, para chegar àquilo: ser escritora. Precisava muito conseguir alguns dólares para ajudar ao senhor Galo e à dona Galinha que já estavam doentes, quase desmoelados, além de viver sonhando com um tempinho livre, longe das olheiras e tanto stress pela correria da vida.

            Às vezes pensava em desistir, lembrava sempre dos conselhos: “pára com isso, quem nasceu em poleiro não é para a granja!”. Apesar da inteligência a pobre jovem galinha nunca pôde compreender por que uns nasciam em granjas chiquérrimas enquanto eles tinha que lutar ferrenhamente pelo bocado minhocal, nunca prosperando. Por que tanto contraste em um galimundo tão evoluído.

            O galinheiro mal sobrevivia  nos galhos da velha mangueira do quintal, cercado de um mato muito cobiçado pelas vacas que por ali pasteavam. Por sorte havia uma cerca, mas esta enferrujara e ameaçava ruir a qualquer instante. Algumas galinhas preocupavam-se muito com isso, faziam passeatas e criavam ongs tentando proteger o matagal biodiversificado do qual se alimentavam.

            Um dia a galinha soube de um programa especial, poderia viajar para a Gringogranjelandia se falasse um pouco o granjinglês, passasse no teste piopsicológico, tivesse entre 18 e 26 dias, soubesse dirigir, não tomasse destilados de milho e nem fumasse da palha, se não tivesse problemas de obesidade, emocionais, físicos, pagasse uma astronômica quantia de mil e oitenta dólares ao programa (imagine para a pobre franguinha que quantia impossível). Porém a pobre galinha lutou por três anos: economizou, não foi à festas, não saía aos finais de semana, fazia um cursinho de granjinglês comunitário, que um franguinho solidário ministrava aos sábados a tarde, pediu dinheiro emprestado à sua tia do galináceo Frão Paulo para tirar a carteira de frangotorista, mas dirigia que era uma lástima, coitada. Até a foto na carteira de motorista demonstrava-lhe o pavor, o sorriso amarelo da pobrezinha.

            E assim foi, deixou o último ano da faculdade para dispor-se a ser escolhida, imagine, por uma família da galinácea gringogranjelana. Seu trabalho seria cuidar dos filhotes durante o dia e estudar durante o tempo livre. Acabou conseguindo; foi escolhida por uma família com três pintinhos bebês. Muito lindinhos.

            Chorou copiosamente na despedida, amava demais sua faculdade e teria que sacrificar o partilhar do último ano de seu curso e também a chance de graduar-se com os amigos de três longos anos.

            Embarcou em um gavião enorme, era a primeira vez que voava. O vôo durou nove horas, foi durante a noite. De manhã cedinho chegaram à “big apple”. Voou sozinha, ninguém para conversar, todos introvertidos ensimesmando. A pobre galinha sentiu-se muito mal durante o vôo, ia já sentindo uma saudade gigantesca de toda a vida frenética que deixara em seu querido Granjasil.

            Viu neve pela primeira vez, vestiu seu casaco de penas e passeou sobre as ruas do galinácio nova-iorquino. Uma galinha sozinha em New York, que galinheiro imenso e lindo, gaiolas douradas reluzindo, quanta suavidade na neve. Os carros são o sonho de todo franguinho. As galinhas, muito brancas de olhos azuis andam cacarejando baixinho, muito educadas, com seus bicos vermelhos e unhas esmaltadas e penas de grifes famosas.

            Depois do treinamento, a jovem galinha embarcou para seu destino final: a granja onde mora o presidente da Gringogranjelândia, Granjuóshington.

            Os galinheiros de Granjuóshington são lindos, tudo reluz, há flores ornamentais, tudo funcional, “o melhor que  há no mundo” cacarejam os gringogranjelanos orgulhosíssimos.

            As galinhas gringogranjelanas levam uma vida muito saudável, há horário para tudo, desde o comer da ração matinal até o momento de adentrarem suas gaiolas granjais para dormir. Ostentam sempre o bico superior suspenso para parecer que estão sempre sorrindo. A pobre galinha jovem tem câimbras de tanto sorrir de volta.

            Todas as noites, após a ração, a pobre jovem galinha se retira para o alto do poleiro que lhe fora reservado no sótão da granja, e cacarejando baixinho chora; pios de soluço lhe agitando o peito franzino. Tem tantas saudades das cristas conhecidas, acostumara-se já aos pés das galinhas granjileiras, como sofria tentando adaptar-se aos sapatos gringogranjelanos.

            Trabalhar de babá é o melhor método anticoncepcional, pensava; “imagine lá se eu vou querer um dia arrumar o meu ninho e botar um ovo, arre!”.  E a cocobeca relembrava saudosa das aulas na faculdade granjal, das poesias, das emoções tantas que uma penosa como ela já tinha aprendido a apreciar, até das bicadas dos professores sisudos cantando de galo tinha saudade.

            E os dias se passavam, a franguinha definhava e aprendia todos os dias palavras novas; lembrava-se ainda da primeira vez que sonhou cacarejar granjinglês. Foi assim que aprendeu, cacarejando titubeante os primeiros “to pirs” e logo cacarejava sentenças inteiras.

            Acostumou-se um pouco ao puleiro alheio, feliz pelo menos por estar enviando à família o bocado minhocal. Todos os dias ao entardecer, após banhar os pintinhos famintos e entregar-lhes à senhora Carijó, ela se retirava, ia entreter-se a observar as galinhas estrangeiras passeando em seu lugar predileto: um puleiro-café e livraria onde por longas horas assistia a vida galinácea, escrevendo suas idéias frangais.

            Porém um dia, estado ela ensimesmada ciscando consigo mesmo uns bocados no puleiro café, adentrou ao puleiro um galinho com ares de valente e humor radiante. Irreverentemente aproximou-se de seu poleiro, todo emplumado cacarejando alto. Foi-lhe dirigindo olhares penosos, demonstrando sinais de que adoraria bicar a ela, a quieta cocobeca.

            A princípio ela hesitou, afinal era uma franguinha donzela, não era dessas galinhas depenadas que andam por ai não senhor. Mas o galinho todo galã lhe disse que não se preocupasse, que não era galanteador banal, queria conhecer-lhe a história toda, desde que chocara.

            Titubeante a cocobeca foi-lhe dizendo os primeiros cós, e logo cacarejava tagarelante como nunca. O galinho a fitava atento, balançando a crista vistosa e molhando o bico em sua beberagem galinesa. As pernas finas da franguinha tremiam, - como era bom, enfim, dividir seus temores, sonhos e dissabores - pensava. Nem bem passou um dia e os jovens franguinhos já morriam de amores.

            Se casaram em Granjas Vegas. Ela vestiu penas alvíssimas, carregou um buquê de gardênias perfumadas, enfeitou com brilhantes a crista, passou brilho bical e se sentiu a galinha mais linda do mundo. Ele sorria feliz, garbosamente balouçava sua crista recém-polida, levou-a pela pena da ponta da asa, docemente bicando-a depois do sim.

            E tudo em Gringogranjelândia ficou lindo. O amor dos jovens penosos enfeitara as ruas, diminuira a distância e a saudade que a jovem sentia de lá, pois as árvores de cá já ostentavam pássaros que podiam contar uma história linda que principiava.

            Porém a jovem galinha continuava a lamentar-se ter deixado o último dia de sua faculdade, até que um dia decidiram que ela voltaria ao Granjasil.

            E assim o fez, a cocobeca fez suas malas e partiu para mais um dia em seu amado poleiro natal. Reviu a família, amigos de outrora, comeu do bocado minhocal que tanta saudade tinha (que tempero!) e os pássaros cantavam acima do poleiro celebrando sua volta.

            A galinha estudou, concluiu seu curso com muito orgulho. Depediu-se durante todo aquele longo dia preparando-se para voltar à Gringogranjelândia. Deixou com saudade os pais, já frangos de idade, suas irmãs casadas e seus seis sobrinhos que chocaram e cresciam tão bonitinhos. Era uma galinha tia agora, a vida lhe acrescera mais do que sonhara.

            E assim vive a cocobeca hoje, distante das palmeiras, do canto do sabiá, mas tem um cardinal que canta maviosamente sobre seu poleiro e de seu garboso galo. Ficou mais bonita, mais chique e vivendo em Gringogranjelândia gradativamente adapta-se aos costumes galinácios estrangeiros. Tem saudades de sua terra, seu poleiro natal, mas tem mister Galo que lhe cacareja tantos carinhos, que lhe faz uma galinha tão completa que a cocobeca se põe pensativa: “Sabe meu galã, que tal um ovo?”.


Hoje


Hoje o dia me pertenceu, acordei porque quis. Fiz do meu dia não seguir nem mesmo o vento.Hoje eu fui mais eu, não precisei ditar e nem ouvir regras, nem colocar máscara alguma para ser normal, como todos os carneirinhos enfileirados. Hoje eu deixei a colina e fui para a floresta explorar. Não temi lobos e nem me envenenei com as plantinhas tenras e exóticas. Hoje carreguei meu filhotinho comigo, visitamos a velha árvore; tão sábia. Hoje dormimos ao relento, fora do horário pois o sono mais doce não cronometramos. Hoje a música mais linda que ouvi foi o som do riso da pequenina. Hoje eu tive um dia só pra mim e isto não tem preço. Deito agora esperando o despertador cedo, já sentindo a saudade do meu hoje que principia a ser ontem.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

PARTO







Dilatadas as veias azuis
do morno ventre distendido
latejam, agonias entre véus
translúcidos,
cobrem o ente perdido
Novelo de lã
Amanhã
Que hoje é dia
do ontem ideal.
Entrelaçados: pernas, mãos, braços,
linhas no rosto perdido
Emergem das águas vãos, traços,
papel de rascunho esquecido
gotejando a orvalho de rosas, lilases
ainda botões a espera de florescer.
Um grito!
Que trazes?
Esquecimento.
Nas trevas se findam as luzes que cegam.
O medo brota em gritos, quando em trevas,
súbito faz-se luz que as negam.

Assim se nasce.

Pela Janela do circular


A vidraça translúcida embaçada pela chuva miúda e constante, não pode cobrir de todo as imagens da vida cotidiana que os rostos desconhecidos estão levando. A travessia de ruas é incansável, passos que vão e vêm.

Nas frias manhãs de Domingo, quando todas as lojas estão fechadas, a praça central torna-se solitária, poucos se arriscam a sair de casa.

Vagarosamente continua a chuva a cair. Somente um estabelecimento está aberto: o boteco da esquina. O piso é malcheiroso, as paredes cobertas de nódoas e limo, o cheiro de gordura é insuportável e uma espessa nuvem de vapor se dissipa no ar, tornando-o irrespirável. Há um rádio ligado num desses programas vulgares onde se fazem anedotas e toca-se música de mau gosto.

Neste inóspito ambiente, tudo vibra e se move: tem vida. Mas a vida está onde não deveriam estar os seres viventes, seres estes que não viveram e sim produtos das manipuladoras máquinas que funcionaram com seus ruídos indiferentes durante toda a semana que se passou.

Vida esta, que aquele homem adiante está, em sua embriagues a bradar, tropegamente andando sobre os paralelepípedos bicolores da praça. Seus braços se cruzam quando uma rajada de vento o atinge; está frio e suas roupas maltrapilhas apenas cobrem sua nudez.

Os pombos se aglomeram na calçada, estão à cata das migalhas deixadas pelos fiéis que assistiram à missa dominical. O bêbado avista e pára, colocando pensativamente a mão sob o queixo. Que terá ele pensado nesse lapso? Que indagação, qual o motivo da contemplação dos pássaros?...

Seriam os pássaros a lembrança dos filhos à espera da migalha que hoje ele não levaria para casa? Sua expressão desolada facilmente traduz-se neste pensamento.

Segundos depois, continuou seu caminho de passos tardios e descompassados, bradando energicamente às árvores, personificando-as, talvez, fazendo-as compreender um ponto de vista qualquer.

A gota formada pelos borrifos de chuva desliza, acompanha a lágrima que o mundo todo já chorou pela condição da miséria humana.

Sossegadamente o bêbado se vai...

Não! Quem se vai é o ônibus que nos leva para longe, o bêbado jamais irá, estará sempre nas esquinas, dormindo nas calçadas e nos frios bancos dos jardins. Ao relento, molhados, com fome e frio. Incapazes de estenderem-se a si as mãos que o fariam levantar.


Cor-de-rosa


            É maio, um cheiro de brisa invade as manhãs no reino distante das majestosas paineiras em flor. Elas vivem no alto da montanha do Pozzobom. Em meio a relva fresca, um caminho de cascalho abre passagem aos dois lados: de cima, abaixo. A grama floresce, são pequeninas flores amarelas que parecem pompoms, peninhas de pintinhos recém-nascidos.

            Há flores minúsculas e roxas, quase negras que quando apertadas entre os dedos deixam manchas rubras. O burburinho de risos passeia ao vento; risos felizes de crianças, os primos queridos. Sempre encontra-se em meio a vegetação selvagem algumas marias-pretas, madurinhas. O ar frio da manhã enche gostoso o peito, cheiro de grama pisada, o cabelo acariciando o rosto de leve.

            O “descidão” é o melhor escorregador do mundo. E lá de baixo pasmos cismamos por um instante a beleza das paineiras. Como uma nuvem de esperança os periquitos filheiros chegam em bando, e a manhã se enche de canto; misturados risos e o barulho dos periquitos. Começa a chover pétalas, o céu turquesa, as nuvens esparsas e imensamente brancas emolduram a imensidão rosa. Um cheiro suave de flor começa a rescender.

            A subida é íngrime, mas quando se brinca de “quem chegar por último é mulher do sapo” não se percebe se sobe ou se desce. O riso tem o mesmo som. E lá de baixo da paineira está ela, com os pezinhos descalços acariciando a grama, a mãozinha delicada tentando enlaçar o tronco robusto da paineira, tão gentil que os espinhos afiados não lhe causam dano algum. Ela sempre sorri, uns dentes brancos lindos e covinhas dos dois lados do rosto; ela espera pacientemente que lhe acerquemos.

            A chuva de pétalas é mágica: um mundo rosa de suavidade e doçura qual algodão doce. Em meio a chuva ela rodopia com seu vestidinho branco, esvoaçante, cantando sempre dança em meio a chuva cor-de-rosa com um ombrinho delicado à mostra.

            “Meu potinho de melado

             Minha cestinha de cará

             Quem quiser casar comigo

             Feche a porta e venha cá

             Ô lê lê lá lá...”

            Corre ligeira para a cestinha de vime. Retira uma colcha de chenille veludosa; lança-a com as duas mãos ao vento que vai abrindo as dobras da fazenda macia. Delicada e ligeira, com as pontinhas dos pés ela pisa o tecido e se assenta, graciosamente. O vento brincalhão lhe joga o chapéu de palha na grama úmida.

            Como um íma nós corremos para ela, enchemo-lhe os cabelos longos, fartos e negros com as flores rosas. Há flores em seu colo e ela enfeita o chapéu cantarolando sempre. E como as saúvas nós todos em uma busca frenética lhe trazemos as frescas flores que caem.

                    Tia Maria, olha esta que linda!

            Ela sorri, agradecida mostrando as covinhas encantadoras e começa:

                    Era uma vez...

            Em segundos estamos todos em silêncio, apenas o som da manhã orquestra o fundo da estória encantada que lá vem. Os olhos brilhantes e ávidos fitam a espera enquanto assentados a sua volta ouvimos. Eram estórias de princesas encantadas, de moças gentis que só faziam o bem; de homens valentes, príncipes que vinham e resgatavam a princesa de uma sempre buxa malvada. Foi assim que conhecemos às princesas: Cinderela, Branca de Neve, Bela Adormecida, Bela... Todas tão diferentes porém tão iguais: gentis, espirituosas, alegres e sempre muito bondosas.

            E os maios foram se passando. Ela conhecera um moço muito alegre que visitava aos domingos a casa do avô em sua motocicleta. Resolveram um dia que se casavam. Tia Beth também conhecera a um rapaz. Com a tia Beth canta-se, sempre. Seus dedinhos pequeninos e calejados das cordas do violão corriam frenéticos acompanhando a voz maviosa nas tardes de domingo. Job controlava o gravador misterioso que o avô sempre ralhava se se apertasse as teclas. Como as duas estavam casadoiras, resolveu-se que se casavam no mesmo dia.

            Foi em maio, a mágica das paineiras traduzidas num bolo de escadas cor-de-rosa. Lindo. A caprichosa mãe do noivo (também Maria) o fizera. Elas chegaram de branco tão limpo que doía os olhos ao sol. Vestiram coroas com gotas na testa e um lindo véu que voava ao vento cintilando das minúsculas gotinhas transparentes que lhes ornamentavam. Etéreas posavam para o fotógrafo. As noivas mais lindas que já se viu, segurando as mãos sorriam felizes uma para a outra, vislumbrando as delícias do encanto do momento. Véus brancos, flores rosas, céu azul.

            Outros maios vieram. Alguns acerca das paineiras, outros, tão longe. Crescíamos impacientes do dia em que poder-se-ia feqüentar os círculos concêntricos das moças bondosas.

            Então vieram os doze anos, havia uma reunião que se fazia na igreja somente para jovens; vesti neste dia  o meu melhor sorriso e fui, encantada em conhecer jovens dóceis, mal podia esperar pelas amigas todas que teria.

            Já no pátio sorria olhando para os formosos vestidos coloridos, procurando por olhos, sem contudo encontrar nenhum. Não vencida aproximei-me do bebedouro e exclamei às duas jovens que lá bebiam:

                    Que lindo dia, não?

É minha primeira reunião!

            Com as bocas ainda entreabertas elas pasmaram-se estarrecidas por um instante, a água escorrendo-lhes boca-abaixo. Tornaram-se, fitaram-me de alto abaixo, com um meneio de ombros rolaram seus olhos de suas órbitas e me deram as costas. Meu sorriso ainda congelado murchando aos poucos.

            Depois disso muitas outras vieram, muitos meneios de ombros, comentários malvados, suspiros de exasperações. E aprendi assim que as moças não eram princesas; não havia encanto nelas, não havia senso de irmandade e sim rivalidade. As moças gentis se desvanesciam como o orvalho após o sol sair.

            Durante muitos maios magoada eu sentia saudade das princesas. Era continuamente admoestada a fugir dos tons pink.

                    Demonstram fraqueza – uns diziam.

                    Encouraja à fé em coisas que não existem – diziam outros.

                    Mulher tem que ser forte! - exasperados outros apregoavam.

            E tudo não fazia muito sentido até o momento em que me dei conta de que na verdade pink, rosa, cor-de-rosa não rotulavam fraqueza alguma, e que o rosa das paineiras não nos havia de forma alguma feito acreditar em coisas que não existiam: falávamos de bondade, de amizade, de vínculos de amor tão fortes que nem a morte conseguia separar.

            Hoje tão distante das paineiras eu sei que aprendi, em imensa parte com minha tia Maria a como ser forte, como acreditar nos sonhos encantados porque eles são sim reais. Minha tia Maria foi minha primeira princesa.